Em Os feitos de Mem de Sá, José de Anchieta defende a visão de uma América habitada por seres semi-bestializados, devido à ação do Príncipe das Trevas e, portanto, ignorantes do verbo divino. Com o cristianismo, o “cão feroz”, “sem a menor lei”, que “roia ossos humanos”, subjugado por Mem de Sá, tornava-se já ser de “coração” “manso”. A obra meritória do governador-geral garantira-lhe um “trono” no “céu”, se não fosse ingrato, desconhecendo-a como resultado da ção divina. “[...] houve nas terras do Sul uma nação que dobrara a cabeça ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida”, na miséria e na crueldade, saciando o “ávido ventre com carnes humanas”. Mas “o pai onipotente volveu os olhares dos reinos da luz à noite das regiões brasileiras”, mandando-lhe “um herói das plagas do Norte” “que vingasse os crimes nefandos”, acabando com guerras e maldades.
Para ressaltar e justificar os feitos do “herói” lusitano, José de Anchieta apresenta um nativo mais próximo às feras do que ao homem, verdadeira “raça selvagem” que “quebrantava as leis santas da mãe natureza e os divinos preceitos.” Um ser que tinha a bestialidade registrada na sua feiúra, enquanto o lusitano resplandecia de beleza e luz. Para anular qualquer valoração positiva da sua própria descrição das armas e dos ornatos dos brasis, define-os de “medonhos e feios”. No poema, os americanos são “gente odienta”, de “corpos brutais”, enquanto Fernão de Sá, “esbelto mais que todos os outros”, tem “como um sol prateado nas armas fulgentes”. A cauinagem tupi-guarani torna-se beberrança abominável: “Poderão os beberrões deixar de encher-se de vinhos, de vomitar o que beberam e de beber novamente o que vomitarão?” “Um vomita, outro apanha na cuia o vômito e o bebe.”
Anchieta assemelha o nativo às feras sanguinárias. Refere-se ao tamoio, combatido por Fernão de Sá, nas margens do rio Cricaré, no Espírito Santo, como “raça felina”, e compara a ação dos americanos à do “tigre”, da “ursa”, da “onça parida”. A comparação é estendida aos animais mais desprezíveis. Um principal derrotado é apresentado como “sapo escondido na toca” e hábitos tupinambás, como os de “porcos”. Ao nomear os americanos como grupo, denomina-os de “horda” e “alcatéias”. Põe na boca de terceiros a lembrança da “natureza animal do índio”. Sobretudo, enfatiza sem cessar as práticas antropofágicas tupi-guarani. Para Anchieta, os nativos eram seres de “fauces” “negras” que desejando “extinguir a sede ardente no sangue que sugam”, fartavam os “ávidos ventres”, “ceifando as queixadas bestiais em corpos humanos”. As descrições da antropofagia buscam horrorizar o leitor: “[...] despedaçar corpos humanos e lançar em vasos novos os membros feitos em postas, pô-los a assar no braseiro e espetar em caniços os pedaços cortados em pequeninos.” Fala de nativos que “fincam” “os cruéis dentes” “nas goelas das vítimas, rasgam e sugam o sangue”.
É contra esses seres incapazes de aderirem, pela compreensão e convencimento, aos preceitos civis e religiosos cristãos, que se abate a ira vingadora e civilizadora de Mem de Sá, expressão excelente de uma providência divina que não se acanha em intervir diretamente no combate do bem contra o mal, do “dia” contra a “noite”, de Cristo contra o Demônio, do cristão contra o antropófago, do lusitano contra o americano, do “Norte” contra o “Sul”. Anchieta descreve com precisão jornalística, partidarismo xenofóbico e frieza desapiedada o massacre geral dos nativos, incapazes de resistirem à ofensiva lusitana, expressão do mercantilismo em expansão, na conquista do litoral e da força de trabalho americana. Sobre a questão do domínio da terra, antes indiscutivelmente pertencente ao nativo, pergunta-se se era justo “deixar ao selvagem lares e férteis campos”. E apresenta e justifica, como vimos, a conquista como a expressão da vontade divina, quando não de sua ação direta. Enlevado, descreve as “armas gloriosas” lusitanas – “nossas armas” – que, “ora decepam braços enfeitados”, “ora abatem com lâmina reluzente cabeças altivas”, revelando à luz as “entranhas” e “vísceras”, ceifando os “corpos brutais”, enviando os nativos às “sombras eternas do inferno”. Com comoção e júbilo, refere-se ao massacre e escravização de talvez oito mil nativos que seguiu à morte de Fernão de Sá: “As armas lançaram no inimigo extermínio medonho. O sangue correu em riachos que espumejavam: muitos tombaram passados ao fio da espada, muitos, de mão e pescoço presos, carregaram cadeias.”
O Sangue dos Malditos
Embriagado pela esteira de sangue quente deixado pelo avanço lusitano na costa, Anchieta canta a morte de velhos, adultos e crianças, o incêndio de aldeias, os campos talados para ultimar pela fome o inimigo abatido, segundo a glória e a vontade de deus, com a “bandeira da cruz na vanguarda”. “[...] decididos a exterminar o inimigo e devastar-lhe com a vingança do fogo todas as casas”, “devastam os campos e lançam nas ocas o incêndio”. “Então o vencedor exultando entrega as aldeias à voragem das chamas ferozes.” “Quem poderá contar os gestos heróicos do Chefe [Mem de Sá] à frente dos soldados, na imensa mata! Cento e sessenta as aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pela chama devoradora, assolados os campos, com suas riquezas, passado tudo a fio de espada!” Um excídio que se arrasta por dias a fio, até que o braço implacável do conquistador se aplaca, cansado. “Já há quinze dias, [...] nosso exército a percorrer densas matas, incendiar casas, talar campos, matar inimigos. Era tempo de voltar aos lares, rever igrejas, casas de Deus, levando em triunfo o pendão da vitória.”
Para júbilo português e glória dos céus, derrotados, massacrados, aterrorizados, os nativos desocupavam as terras, deixando o lusitano espraiar-se, vergando-se às exigências sugeridas por Manuel da Nóbrega ao rei e implementadas por Mem de Sá. José de Anchieta assinala que o governador-geral ordenava aos vencidos que reconhecessem o “Deus do céu e da terra”, deixassem os “recôncavos, campos e florestas”, construíssem “novas aldeias”, sempre “no mesmo local”, sob a autoridade jesuíta. Que abandonassem a poligamia, a antropofagia, a guerra, quando não feita sob o comando lusitano.
O combate, derrota, massacre e submissão dos antigos senhores do litoral não foi tema arbitrário, abordado em forma livre pelo poeta por suas possibilidades literárias, mas relato do ocorrido e conhecido, no qual o autor participara em parte dos sucessos, de corpo presente. Ao realizar o elogio do jesuíta como vetor fundamental da realização, por Mem de Sá, da vontade divina no litoral brasílica, Anchieta reafirma o compromisso da sua ordem na imposição da sociedade colonial lusitana no litoral brasílico. Ao descrever o combate ao francês e seu aliado tupinambá na Guanabara, assinala: “Vejo [...] um sacerdote adestrado armado com o raio inflamado da palavra divina, membro da Companhia de Cristo Rei, para o soldado confessar [...], antes de entrar no combate [...].” Ao responsabilizar a Providência pela destruição dos nativos e calvinistas, lembra que foram os jesuítas, precisamente, “que com seus gemidos e queixas comoveram os céus [...]; eles que, dardejando do peito ardente suas setas de fogo, moveram o Pai eterno a prostrar o inimigo, incutir-lhe terror [...].”
O sábio padre Armando Cardoso pede que não se tome ao pé da letra a homenagem de Anchieta ao massacre do nativo, descrita por Darcy Ribeiro como propaganda do genocídio étnico: “[...] não nos deixemos iludir pelo estilo épico [...], principalmente a respeito da mortandade de indígenas nesses combates.” As carnificinas seriam sobretudo “quadros estilísticos da Renascença; com tintas ainda mais fortes dos romances de cavalaria medieval”. Entretanto, o notável em Os feitos de Mem de Sá não é o genocídio das populações nativas, reafirmado pela documentação histórica, mas a adesão de Anchieta ao banho de sangue do colonialismo lusitano no litoral. A proposta de Armando Castro de absolvição do pecado jesuíta contra a população americana não o impediu de justificar a obra colonial: “[...] convém, entretanto, salientar fortemente que as guerras de que trata o poema, empreendidas por Mem de Sá, a quem nunca esteve ausente o conselho precioso de Nóbrega, foram não só justas mas necessárias e forçosas, em defesa da urgência.” [RIBEIRO, 2007: 69] Uma visão em plena consonância com a avaliação luminar do próprio Anchieta, escrito em Piratininga, em 1556: “Porque para esse gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro [...].”
Para ressaltar e justificar os feitos do “herói” lusitano, José de Anchieta apresenta um nativo mais próximo às feras do que ao homem, verdadeira “raça selvagem” que “quebrantava as leis santas da mãe natureza e os divinos preceitos.” Um ser que tinha a bestialidade registrada na sua feiúra, enquanto o lusitano resplandecia de beleza e luz. Para anular qualquer valoração positiva da sua própria descrição das armas e dos ornatos dos brasis, define-os de “medonhos e feios”. No poema, os americanos são “gente odienta”, de “corpos brutais”, enquanto Fernão de Sá, “esbelto mais que todos os outros”, tem “como um sol prateado nas armas fulgentes”. A cauinagem tupi-guarani torna-se beberrança abominável: “Poderão os beberrões deixar de encher-se de vinhos, de vomitar o que beberam e de beber novamente o que vomitarão?” “Um vomita, outro apanha na cuia o vômito e o bebe.”
Anchieta assemelha o nativo às feras sanguinárias. Refere-se ao tamoio, combatido por Fernão de Sá, nas margens do rio Cricaré, no Espírito Santo, como “raça felina”, e compara a ação dos americanos à do “tigre”, da “ursa”, da “onça parida”. A comparação é estendida aos animais mais desprezíveis. Um principal derrotado é apresentado como “sapo escondido na toca” e hábitos tupinambás, como os de “porcos”. Ao nomear os americanos como grupo, denomina-os de “horda” e “alcatéias”. Põe na boca de terceiros a lembrança da “natureza animal do índio”. Sobretudo, enfatiza sem cessar as práticas antropofágicas tupi-guarani. Para Anchieta, os nativos eram seres de “fauces” “negras” que desejando “extinguir a sede ardente no sangue que sugam”, fartavam os “ávidos ventres”, “ceifando as queixadas bestiais em corpos humanos”. As descrições da antropofagia buscam horrorizar o leitor: “[...] despedaçar corpos humanos e lançar em vasos novos os membros feitos em postas, pô-los a assar no braseiro e espetar em caniços os pedaços cortados em pequeninos.” Fala de nativos que “fincam” “os cruéis dentes” “nas goelas das vítimas, rasgam e sugam o sangue”.
É contra esses seres incapazes de aderirem, pela compreensão e convencimento, aos preceitos civis e religiosos cristãos, que se abate a ira vingadora e civilizadora de Mem de Sá, expressão excelente de uma providência divina que não se acanha em intervir diretamente no combate do bem contra o mal, do “dia” contra a “noite”, de Cristo contra o Demônio, do cristão contra o antropófago, do lusitano contra o americano, do “Norte” contra o “Sul”. Anchieta descreve com precisão jornalística, partidarismo xenofóbico e frieza desapiedada o massacre geral dos nativos, incapazes de resistirem à ofensiva lusitana, expressão do mercantilismo em expansão, na conquista do litoral e da força de trabalho americana. Sobre a questão do domínio da terra, antes indiscutivelmente pertencente ao nativo, pergunta-se se era justo “deixar ao selvagem lares e férteis campos”. E apresenta e justifica, como vimos, a conquista como a expressão da vontade divina, quando não de sua ação direta. Enlevado, descreve as “armas gloriosas” lusitanas – “nossas armas” – que, “ora decepam braços enfeitados”, “ora abatem com lâmina reluzente cabeças altivas”, revelando à luz as “entranhas” e “vísceras”, ceifando os “corpos brutais”, enviando os nativos às “sombras eternas do inferno”. Com comoção e júbilo, refere-se ao massacre e escravização de talvez oito mil nativos que seguiu à morte de Fernão de Sá: “As armas lançaram no inimigo extermínio medonho. O sangue correu em riachos que espumejavam: muitos tombaram passados ao fio da espada, muitos, de mão e pescoço presos, carregaram cadeias.”
O Sangue dos Malditos
Embriagado pela esteira de sangue quente deixado pelo avanço lusitano na costa, Anchieta canta a morte de velhos, adultos e crianças, o incêndio de aldeias, os campos talados para ultimar pela fome o inimigo abatido, segundo a glória e a vontade de deus, com a “bandeira da cruz na vanguarda”. “[...] decididos a exterminar o inimigo e devastar-lhe com a vingança do fogo todas as casas”, “devastam os campos e lançam nas ocas o incêndio”. “Então o vencedor exultando entrega as aldeias à voragem das chamas ferozes.” “Quem poderá contar os gestos heróicos do Chefe [Mem de Sá] à frente dos soldados, na imensa mata! Cento e sessenta as aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pela chama devoradora, assolados os campos, com suas riquezas, passado tudo a fio de espada!” Um excídio que se arrasta por dias a fio, até que o braço implacável do conquistador se aplaca, cansado. “Já há quinze dias, [...] nosso exército a percorrer densas matas, incendiar casas, talar campos, matar inimigos. Era tempo de voltar aos lares, rever igrejas, casas de Deus, levando em triunfo o pendão da vitória.”
Para júbilo português e glória dos céus, derrotados, massacrados, aterrorizados, os nativos desocupavam as terras, deixando o lusitano espraiar-se, vergando-se às exigências sugeridas por Manuel da Nóbrega ao rei e implementadas por Mem de Sá. José de Anchieta assinala que o governador-geral ordenava aos vencidos que reconhecessem o “Deus do céu e da terra”, deixassem os “recôncavos, campos e florestas”, construíssem “novas aldeias”, sempre “no mesmo local”, sob a autoridade jesuíta. Que abandonassem a poligamia, a antropofagia, a guerra, quando não feita sob o comando lusitano.
O combate, derrota, massacre e submissão dos antigos senhores do litoral não foi tema arbitrário, abordado em forma livre pelo poeta por suas possibilidades literárias, mas relato do ocorrido e conhecido, no qual o autor participara em parte dos sucessos, de corpo presente. Ao realizar o elogio do jesuíta como vetor fundamental da realização, por Mem de Sá, da vontade divina no litoral brasílica, Anchieta reafirma o compromisso da sua ordem na imposição da sociedade colonial lusitana no litoral brasílico. Ao descrever o combate ao francês e seu aliado tupinambá na Guanabara, assinala: “Vejo [...] um sacerdote adestrado armado com o raio inflamado da palavra divina, membro da Companhia de Cristo Rei, para o soldado confessar [...], antes de entrar no combate [...].” Ao responsabilizar a Providência pela destruição dos nativos e calvinistas, lembra que foram os jesuítas, precisamente, “que com seus gemidos e queixas comoveram os céus [...]; eles que, dardejando do peito ardente suas setas de fogo, moveram o Pai eterno a prostrar o inimigo, incutir-lhe terror [...].”
O sábio padre Armando Cardoso pede que não se tome ao pé da letra a homenagem de Anchieta ao massacre do nativo, descrita por Darcy Ribeiro como propaganda do genocídio étnico: “[...] não nos deixemos iludir pelo estilo épico [...], principalmente a respeito da mortandade de indígenas nesses combates.” As carnificinas seriam sobretudo “quadros estilísticos da Renascença; com tintas ainda mais fortes dos romances de cavalaria medieval”. Entretanto, o notável em Os feitos de Mem de Sá não é o genocídio das populações nativas, reafirmado pela documentação histórica, mas a adesão de Anchieta ao banho de sangue do colonialismo lusitano no litoral. A proposta de Armando Castro de absolvição do pecado jesuíta contra a população americana não o impediu de justificar a obra colonial: “[...] convém, entretanto, salientar fortemente que as guerras de que trata o poema, empreendidas por Mem de Sá, a quem nunca esteve ausente o conselho precioso de Nóbrega, foram não só justas mas necessárias e forçosas, em defesa da urgência.” [RIBEIRO, 2007: 69] Uma visão em plena consonância com a avaliação luminar do próprio Anchieta, escrito em Piratininga, em 1556: “Porque para esse gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro [...].”
* Mário Maestri, 59, é professor do curso e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. E-mail: maestri@via-rs.net